Queremos noticiar, por meio deste brevíssimo texto escrito às pressas, a difícil jornada que nós, profissionais da saúde mental, temos enfrentado; em especial nestes últimos dias. O intuito aqui é transmitir que, recentemente, e mesmo não estando na ditadura, sofremos um golpe. Gostaríamos de compartilhar com outros profissionais, serviços de saúde, aos que se interessam pela saúde mental e pela defesa do SUS e movimentos sociais em defesa da vida, aos que militam ainda por uma “sociedade sem manicômios” e pela manutenção dos ideários da Reforma Psiquiátrica. E, ainda, aos psicanalistas interessados pela clínica da psicose, pelas questões da saúde pública. O evento de “caça às bruxas” que, infelizmente, estamos enfrentando neste momento no CAPS e que todos estamos cientes que faz parte de um contexto muito maior e bastante atual. Esperamos, assim, disparar uma discussão mais ampla.
O CAPS Professor Luís da Rocha Cerqueira – bastante conhecido como CAPS Itapeva - teve nos seus últimos anos sob a gestão da Organização Social SPDM (Associação Paulista para o Desenvolvimento para a Medicina). O nome desta organização, que também gerencia outros equipamentos de saúde espalhados pela cidade de São Paulo, já sugere que a sua preocupação é bem específica. A sua administração tem comprovado que o seu interesse é exclusivamente a medicina, interesse este que não se estende aos pacientes nem tampouco à saúde mental. Explicaremos...
No início desta semana, fomos surpreendidos com a notícia de que haveria uma demissão em massa – na qual cerca de 30 profissionais em regime de CLT foram desligados abruptamente do serviço. O motivo alegado pela direção era o corte de verba realizado pela Secretaria de Estado da Saúde. Anexado a este aviso, também nos foi informado que seríamos liberados do cumprimento do aviso prévio e, ainda, que seríamos indenizados de acordo com a lei e que não precisaríamos voltar ao CAPS, ficando à direção com a incumbência de comunicar o nosso desligamento aos usuários. Obviamente, ignoramos esta última sugestão, para não dizer solicitação, recusando a desaparecer do CAPS. Desse modo, temos - além de administrar o impacto desta notícia para cada um de nós e a forma violenta como tal manobra foi feita pela direção do serviço -, nos dedicado a realizar a despedida com os nossos usuários, tentando explicar para cada um a situação, fazer o desligamento e, em alguns casos, planejar e realizar os encaminhamentos possíveis. Apesar de estar sendo um momento de expressivo sofrimento para usuários e funcionários, impossível de disfarçar, temos tentado suavizar, na medida do possível, o impacto desta situação, acolhendo os usuários que, por sua vez, têm se mostrado muito lúcidos e também acolhedores para com a equipe nesta circunstancia tão devastadora.
Nesta reunião da direção com os funcionários que se deu em caráter de informe (não deixando nenhuma brecha para qualquer debate e esclarecimentos); aliás um, senão o único, esclarecimento que nos foi dado foi assim explicitado: uma equipe mínima se responsabilizaria pelo cuidado de mais de 500 pacientes - garantindo, então, que o CAPS não fechasse as suas portas -, e que não precisaríamos nos preocupar. Mas, isto é quase impossível para os que escolheram trabalhar em um equipamento como o CAPS, cuja missão é acompanhar intensivamente os pacientes com quadros mentais graves e seus familiares.
A nossa hipótese é que este corte de vários profissionais alocados neste CAPS foi um pretexto para fazer a “faxina”, ou seja, retirar aqueles que incomodam, que, no entender da direção, “atrapalham” porque relembram incessantemente os princípios reformistas, que entendem que o CAPS é um lugar de uma construção coletiva que leva em consideração seus usuários e profissionais para a efetuação de qualquer mudança, que enfrentam a loucura sem querer normatizá-la, que não evita os conflitos que existem em todo e qualquer ambiente institucional, que entende que os impasses na clínica podem ser promotores de avanços teóricos e, consequentemente, para a própria clínica.

A nossa hipótese é de que com essas mudanças todas, eles até poderão continuar a se nomear CAPS (e receberem muito por isso), mas será a realização de uma outra proposta: um ambulatório, um centro de referência, um centro de especialidades, um setor de hospital, um estacionamento (como ironizou uma ex-servidora) ou qualquer outra coisa, menos um CAPS.
Infelizmente, o que temos assistido é que o CAPS Itapeva – que carrega uma história tão longa no campo da saúde mental e também na formação de profissionais -, tem sido desmontado por meio de muitas estratégias (que aqui não daria para esmiuçar), sendo a demissão em massa apenas uma delas. Ambicionando um ambiente asséptico em que não cabe nenhuma espécie de discordância e conflito, esta administração não coloca a clínica em primeiro lugar. Ademais, despreza as diretrizes e princípios estipulados pelas portarias ministeriais, o que enfraquece o SUS. Com a saída maciça de profissionais, muitos projetos, oficinas, grupos, atendimentos, equipes, parcerias institucionais e intervenções no território foram encerrados; destruindo, em nossa opinião, em um tempo tão curto, investimentos de tantos anos. A execução das demissões tem redundando numa série de desdobramentos e o que constatamos é que o maior ataque é dirigido ao próprio CAPS, já que a instituição não é o espaço físico somente, mas são as pessoas, os profissionais e os pacientes que animam esta clínica, bem como as práticas e os acontecimentos construídos cotidianamente e compartilhados coletivamente...
Cabe ainda dizer que, mais do que garantir os nossos empregos ou lutar por condições mais dignas e favoráveis de trabalho no campo da saúde, a nossa intenção com este texto é manifestar publicamente a nossa insatisfação com esta situação e, sobretudo, defender o CAPS. Em se tratando do Itapeva, o CAPS mais antigo do Brasil, o primeiro a experimentar a clínica ampliada, que alojou àqueles que participaram da sua invenção (antes mesmo deste projeto se constituir como lei) e que estavam atravessados pelas experiências de Reforma no mundo, a saber: a psicoterapia institucional francesa, a desistitucionalização italiana, dentre outras; e que fizeram valer, desde 1987, a proposição de Basaglia de que é possível e desejável uma clínica que coloque a doença entre parênteses e cujo foco seja a existência/sofrimento, e que, no dizer dos simpatizantes da psicanálise, uma clínica cujo foco é o sujeito.
Enfim, a nossa indignação pode ser ainda explicitada com estas perguntas: Como essas pessoas - impregnadas por um discurso médico e psiquiatrizante, que estiveram ao longo de seus itinerários formativos e de trabalho, tão alienadas destes movimentos históricos e sociais, especialmente, da reforma psiquiátrica, movimento este que dá norte a todos os CAPS -, podem gerenciar este projeto? Como entregar nas mãos desses que se dizem especialistas em cuidar de pacientes com “transtornos mentais graves” (como eles gostam de dizer) e, que ao fazer o gerenciamento do serviço a seu bel prazer, desconsideram o vínculo? Como deixar que estes gestores administrem um equipamento deste porte como uma empresa e não como um serviço de saúde, viabilizando ações que banalizam os efeitos da ruptura para os pacientes psicóticos? Que tipo de lugar tem a clínica para eles? Qual o compromisso com os usuários? O que fazer para impedir esse desmantelamento de um trabalho coletivo construído há anos cuja aposta é fortalecer uma clínica artesanal, inevitavelmente implicada com as ações e com o desejo de cada um? Em suma, como aceitar tamanha contradição?
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